sábado, 19 de junho de 2010

As Contradições Sociais do Rio de Janeiro da Belle Époque

 Denise Oliveira*

                                                           Introdução:
O que pretendo discutir neste texto são as inúmeras contradições que permearam todo o processo de consolidação da República no Brasil, e em especial o Rio de Janeiro, pois a República coincide com a entrada do país na ordem capitalista, e o emprego do termo cidadão foi e ainda é usado em larga escala pela sociedade, no intuito de dar as classes populares uma falsa impressão de igualdade. Ao discutir cidadania é impossível não passar pela emancipação dos escravos e pelas várias campanhas imigratórias que garantiam a “ mão de obra livre”, livre para ser explorada já que neste momento se fecha o acesso a propriedade de terras e aos meios de produção.
O processo capitalista já vinha sendo desenhado no Brasil desde 1850(1) , com a proibição do tráfico negreiro e o incremento da utilização de mão de obra livre, através do incentivo à imigração européia, que servirá não só para alimentar a indústria e o campo, mas para ajudar no desenho da ideologia do trabalho, tão necessário à uma nação que pretende ser capitalista, mas que ocupará o papel de fornecedora de matérias-primas para os países com capitalismo mais desenvolvido, e também funcionará como meio de absorver a mão de obra excedente européia.
A República nascerá justamente no momento em que se começa a ter claro a noção de trabalho x capital e homem livre = força de trabalho à venda. É dentro desse caldo de interesses que todos passam a serem designados cidadãos, até mesmo para justificar a falta de cidadania que envolvia todo esse processo capitalista. Portanto, buscando entender as dicotomias que envolvem essa palavra, foi surgindo a necessidade de compreender melhor a estrutura social colocada desde 1889 até os dias atuais. Seriam cidadãos os sertanejos massacrados em Canudos? Seriam cidadãos os sulistas da Guerra do Contestado? E os marinheiros rebelados e assassinados, podem ser classificados como cidadãos? Os habitantes dos cortiços e cabeças de porco eram cidadãos? São essas perguntas que tentarei desenvolver neste texto, e ao longo da dissertação procurarei encontrar as respostas para a pergunta. Afinal quem é e quem não é cidadão na República brasileira? 
(1)1850 é criada a Lei Eusébio de Queiroz, que proibia a entrada de novos escravos vindo da África, na prática essa lei se deu por vontade da Inglaterra, que já não via mais interesse neste comércio
                                       O NASCIMENTO DOS CORTIÇOS
A cidade do Rio de Janeiro, nasceu para ser ponto de entrada e saída de produtos para a Europa através do seu porto. Porém, após o fim do tráfico de escravos e da crise na produção cafeeira do vale do Paraíba, ocorreram mudanças substanciais nas funções econômicas da cidade, o que permitiu o surgimento de indústria com desdobramento para setores de transportes e serviços.
A mão de obra que seria utilizada neste novo modelo econômico foi a estrangeira, importada na primeira hora para atender as fazendas de café. Porém, houve deslocamento desta força de trabalho para os centros urbanos e logicamente surgiu o problema de habitação. Aonde colocar tanta gente numa cidade com pouco espaço? A solução encontrada dentro da ordem capitalista de acumulação de capitais foram os cortiços, estalagens e casas de cômodos.
O cortiço, também conhecido como “habitação coletiva”, era constituída de pequenos cômodos, construídos nos fundos dos prédios, podendo ter ou não dois andares, não possuíam cozinhas e os sanitários coletivos. As estalagens possuíam sala e quarto, cozinha e sanitários externos e coletivos.
Essas construções geralmente tinham problemas de circulação de ar, pois seus proprietários, na ânsia de ganhar mais e mais dinheiro, faziam inúmeros cômodos sem se preocupar com dados tão bobos como: ventilação, iluminação e privacidade. Sendo assim, nos cortiços e estalagens sempre havia grande incidência de doenças e as que mais assolavam por serem altamente contagiosas eram: a tuberculose, varíola,sarampo. É claro que essas doenças não eram somente um problema de habitação, mas também das condições gerais de vida do morador do cortiço. Este quase sempre era operário das fábricas que não dispunham de nenhum mecanismo de condições adequadas de trabalho, ganhava salários miseráveis que não garantiam uma alimentação adequada para manter o organismo saudável e não conseguiam ter descanso e lazer que garantisse sua saúde, já que trabalhavam entre 14 e 18 horas diárias. Tudo isso contribuía para que as doenças acometessem mais os moradores dos cortiços do que os outros, porém mais tarde esse será o motivo usado pelas “ autoridades” na guerra contra esse tipo de moradia.
Eram esses os cidadãos da República, moravam mal, comiam mal, viviam mal, vestiam-se mal. Não será à toa que em 1904, esta “ horda de malfeitores” irá colocar em xeque a ordem pré-estabelecida, no episódio da Revolta da Vacina.

                           CIDADÃOS INATIVOS SOMOS TODOS NÓS

Seguindo o raciocínio de Louis Conty, “ O Brasil não tem povo”,(2) podemos entender claramente que o papel dos pobres na República não mudou, continuou igualzinho ao que era na monarquia. De nada adiantou a criação do sufrágio universal no voto, já que este, de “universal” não tinha nada, pois não incluía os analfabetos, negros e mulheres, ou seja, o grande contingente trabalhador do país.
Essa exclusão foi interpretada pelos intelectuais da época como: apatia. É mais fácil colocar o povo como apático, difícil é assumir que ele (o povo) é impedido de participar do processo político do país. Isso fica claro nos dias de hoje, quando se coloca que “os cidadãos não tem segurança por causa da bandidagem”(3) resta saber quem é o bandido.
Na Proclamação da República o povo foi alijado de participar, mas isso não quer dizer que nos anos seguintes não houve confronto entre o poder da rua e o poder dos gabinetes. Logo, em 1893 acontece a Revolta da Armada, entre 1893 à 1895, a Revolução Federalista, entre 1893 à 1897 a Guerra de Canudos, em 1904 a Revolta da Vacina, em 1910 a Revolta da Chibata e entre 1912 à 1916 a Guerra do Contestado. Todos esses movimentos mostraram que o povo não estava morto e que a questão da cidadania era cobrada sim, talvez não da forma que o poder instituído queria ou gostasse, mas da forma que o povo sabia cobrar.
Nos dias atuais não temos uma grande revolta, ou uma guerra civil declarada, mas o povo continua cobrando sua cidadania e a forma mais usada é o “ roubo”, pois se um jovem em idade produtiva não consegue uma colocação no mercado de trabalho oficial, ele parte para o extra-oficial, que pode ser o tráfico de drogas, seqüestro ou assaltos. Na verdade entendo que o uso desta via, passa pela questão de “ roubar” a cidadania que lhe foi negada, resta saber se o poder dos gabinetes entendem isso desta forma.(4)
Mas retornando ao ponto da “apatia” política que acometia os cariocas, podemos passar para uma outra questão: a presença de elementos politicamente ativos, mas que não eram enquadrados como cidadãos, era a escória, a canalha ou a escuma social. Não é necessário dizer que esses elementos eram os negros e mestiços, que não tinham lugar algum na sociedade republicana. José Murilo de Carvalho dá um destaque especial a esses elementos...
"Na melhor das hipóteses, eram jacobinos, palavra que para o representante francês tinha conotação negativa, pois era insulto o uso dessa expressão para identificar um tipo de gente que não achava estar à altura dos exemplos originais.”(5)
Essa camada da sociedade por ser a que mais sofria, também era a que mais fazia barulho, e não foi por outro motivo que estiveram em massa na Revolta da Vacina, ou na resistência às demolições dos cortiços, locais que em sua maioria habitavam, imposta por Pereira Passos.

(2)Louis Conty biólogo francês citado por José Murilo de Carvalho no livro Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. PP 66
(3) A expressão bandidagem é usada pela autora na condução do que a sociedade entende por lei.
(4) Hosbsbawm coloca este tipo de pensamento bem definido no livro Bandidos pp.17
(5) José Murilo de Carvalho. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. PP 72

                                                  AS CLASSES PERIGOSAS
É muito comum a utilização deste termo para denominar os pobres, os negros, os bêbados, e todos aqueles que não estão dentro do “chamado padrão estético normal”.
Esta expressão surgiu na metade do século XIX, que por “coincidência” também, foi a época do boom da Revolução Industrial, momento bastante complicado na Europa, aonde as hordas de desempregados, expulsos dos campos, formava os batalhões de miseráveis que perambulavam pelas ruas. A autora inglesa Mary Carpentier(6), por exemplo, utilizava claramente este termo no sentido de identificar o grupo formado à margem da sociedade civil. Para ela as classes perigosas eram constituídas pelas pessoas que houvessem passado pela prisão, ou que não tendo sido presa optaram por obter o seu sustento e sua família através de furtos e não do trabalho. Fica claro que dentro da lógica do trabalho vigente, todas as pessoas que optassem por um modo menos espoliativo de viver eram colocadas dentro deste termo ‘perigoso’.
No Brasil não foi diferente, os habitantes dos cortiços, que podiam ser ou não trabalhadores também eram taxados de ‘perigosos’. Os habitantes de Canudos eram inimigos da “boa ordem”, e por isso perigosos. O mecanismo coercitivo não era a única forma de obrigar as classes populares a se enquadrar na ideologia do trabalho, neste ponto a indução poderia se dar de outras formas: através da educação, do respeito religioso à propriedade e da ambição de possuir alguma coisa através do trabalho honrado e digno, e é claro de muita economia já que a posse á propriedade não estava aberta a este trabalhador. Nisso Chalhoub é brilhante quando aponta no livro Trabalho Lar e Botequim, todo esforço da sociedade em desfazer o mito da preguiça inata do trabalhador nacional, e ainda ilustra melhor da seguinte forma:
“ O cidadão recebe tudo da sociedade, pois esta lhe garante a segurança, os direitos individuais, a liberdade e a honra, etc. O cidadão, portanto, está permanentemente endividado com a sociedade e deve retribuir o que dela recebe."(7)
Nas primeiras décadas do século XX, essa ideologia do trabalho já estava bem plantada no Brasil, e é claro que para justificar a falta de colocação para todos, e a reserva de mão de obra tão necessária ao capitalismo,a Comissão Parlamentar irá buscar fundamentos para declarar guerra a ociosidade. Chalhoub coloca isso claramente:

“ As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre foram e hão de ser a mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o título de classes perigosas; pois mesmo quando o vício não é acompanhado pelo crime , só o fato de aliar-se a pobreza no mesmo indivíduo constitui- se um justo motivo de terror para a sociedade."(8)

A partir desta forma de pensar o pobre podemos concluir que a mesma sociedade que o cria, é também a que mais o teme. E neste contexto fica irremediavelmente complicado definir quem são e quem não são cidadãos. A meu ver a república não trouxe essa resposta, e mesmo que tentasse copiar padrões norte-americanos e europeus nunca conseguiu garantir os direitos civis e políticos a seus cidadãos.
É a partir desta falta de garantia que o termo cidadão acabou ficando dúbio e mal explicado, e hoje podemos ouvir coisas como “sou cidadão, necessito de segurança”. Bem, nestes últimos anos nunca ouvi tanto a mesma expressão vinda de classes tão distintas. Ao mesmo tempo em que a classe média em seus apartamentos gradeados e carros trancados gritam por segurança, o morador pobre das favelas pede a mesma segurança contra a própria polícia que entra em sua comunidade atirando em tudo que se mexe. E aí fica a seguinte pergunta: que cidadão, que segurança?

(6)Mary Carpenter é citada por Sidney Chalhoub no livro Cidade Febril. PP 20
(7)Chalhoub, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim. PP 43
(8) Chalhoub, Sidney. Cidade Febril. PP 21

                  A REVOLTA DA VACINA: CIDADÃOS INATIVOS, NEM TANTO
Por tudo explanado até aqui, podemos compreender como se deram as condições para que a população carioca se opusesse tão drasticamente à vacinação obrigatória, imposta justamente pelos que menos se preocupavam com a vida dos mais pobres. Vejamos como se encontravam as classes populares no início do século XX.
Cerca de 80% da população carioca não tinha direito a voto e os outros 20% que tinham esse direito preocupavam-se em perpetuar sua classe no poder. Porém a população mesmo impedida de participar diretamente da vida política do país, mostrava-se atenta a todo exercício de poder que lhes afetava o dia-a-dia, e se sentiam na obrigação de defender tudo que consideravam seu direito. As condições de vida na cidade do Rio de Janeiro nunca foram boas. Desde a chegada da Família Real em 1808, a cidade já sofria com a falta de espaço para acomodar todos que nela viviam, tanto que foi necessário instituir o PR( Príncipe Regente), mais conhecido pelo povo como ponha-se na rua, para que a Família Real pudesse ser instalada.
Esse problema não só não foi resolvido, como com o passar dos anos foi se agravando. E assim se chegou ao século XX com uma cidade que possuía um espaço urbano bastante acanhado, todo cortado por montanhas, pântanos e o mar.
Porém, a capital do país crescia vertiginosamente por causa da migração de trabalhadores das fazendas que se arruinavam no Vale do Paraíba, as migrações assombrosas, por causa da ilusão de se enriquecer facilmente devido a política do Encilhamento, das condições concretas de maior mercado de trabalho que a cidade começa a apresentar e das grandes levas de imigrantes europeus que entraram no país nos últimos anos do século XIX e início do século XX. Aonde colocar tanta gente numa cidade tão pequena?
No campo econômico a cidade encontrava-se mais falida do que nunca, pois o fracasso do Encilhamento de Rui Barbosa e a desastrosa administração de Campos Sales formou um flagelo singular para as camadas mais pobres da população, pois diminuíram ainda mais as ofertas de emprego e o custo de vida aumentou sensivelmente. As agitações começavam a ferver na cidade. Nicolau Sevcenko coloca esse momento de forma bem clara:
“ É claro que essa efervescência tumultuária latente, eventualmente alarmante, vinha comprometer os melhores planos da elite governamental. Por um lado, era o aumento da insegurança pessoal que desassossegava quem quer que tivesse algo a perder. A Imprensa trovejava reprimendas ao governo pela sua inépcia diante do aumento da criminalidade urbana. A crônica policial ganhava espaços cada vez maiores com descrição enraivecida do aumento escandaloso de roubos, assaltos, arrombamentos, homicídios, assim como da vadiagem, prostituição, da mendicância e do alcoolismo. Mais muito pior era segurança social que essa situação engendrava visto que era essa população miúda e turbulenta quem dominava efetivamente o centro da cidade.”(9)
O grande problema não era como viviam os miseráveis, mas sim o fato dessa gente estar bem no centro da cidade, convivendo com as pessoas de bem. Esse era o grande problema, e assim depois do exemplo da Comuna francesa, os governantes teriam que dar um jeito para que o fato não se repetisse no Rio de Janeiro. Por isso quando assumiu o cargo de prefeito indicado por Rodrigues Alves, Pereira Passos tratou de remodelar a cidade e usou para isso o modelo francês que acabara com as ruelas, casas de cômodos e estalagens. E a essa forma de esconder a miséria foi dado o nome de remodelamento.
Para legitimar essa atitude foi colocado que os cortiços eram focos de doenças e que as casas eram insalubres. Em nome da saúde popular, Pereira Passos aliado a Oswaldo Cruz e Paulo de Frontim iniciaram a reforma urbana e sanitária da Cidade. Não que esta reforma não fosse necessária, pois era verdade que a cidade era suja, mal-cheirosa e continha grandes focos de doenças, mas para isso o poder instituído usou a força demolindo os cortiços e obrigando a população a ser vacinada mesmo contra sua vontade. Os governantes não se preocuparam em fazer uma campanha esclarecedora da importância da vacinação e muito menos se preocuparam com o destino das pessoas que perdiam suas casas. Por esse motivo a população pobre não aceitava a intromissão do governo em suas vidas, já que era um governo constantemente ausente e pouco preocupado com o destino dos trabalhadores. Assim, estava dada a condição para que a população sé colocasse contra a vacinação obrigatória e a intromissão do poder em seu cotidiano.
Mais uma vez recorro a Sevcenko para ilustrar a forma que se deu a reforma urbana no início do século XX.
“As vítimas são fácies de identificar: toda a multidão de humildes, dos mais variados matizes étnicos, que constituíam a massa trabalhadora, os desempregados, os subempregados e os aflitos de todas as espécies que povoavam a cidade. A ação do governo não se fez somente contra os seus alojamentos: suas roupas, seus pertences pessoais, sua família, seus animais, suas formas de subsistência e de sobrevivência, sua cultura enfim, tudo é atingido pela nova disciplina espacial física, social, ética e cultural imposta pelo gesto reformador”.(10)
Com esse gesto o governo republicano, mostrava bem a que interesses serviam e por ser um gesto oficial encontrava na justiça respaldo para ser injusto, brutal e discriminador.
A população respondeu a esses atos com extrema violência, e durante quatro dias no mês de novembro de 1904, essa camada da população mostrou não ser assim tão inativa e a Cidade do Rio de Janeiro foi palco da Revolta da Vacina. Um incidente social com grande número de mortos, feridos, presos e banido e que afinal deu ao governo um belo pretexto para se livrar das camadas inoportunas que habitavam a cidade tais como: os capoeiras, os vadios, as prostitutas e principalmente os negros.
A Revolta da Vacina é um exemplo único na história do movimento popular brasileiro que se baseia na defesa do cidadão em não aceitar ser tratado de forma arbitrária pelo governo. E mesmo sendo sufocada deixou na população o sabor de ter resistido, de não serem apenas inativos.

(9)Sevcenko, Nicolau. A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes- PP 55
(10)Sevcenko. Nicolau. A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes – PP 58

                                         A CIDADE SE RECOMPÕE
Após sufocar os rebeldes de novembro de 1904, e impor a urbanização a todo custo, foi inaugurada oficialmente em 15 de novembro de 1905 a Avenida Central. A grande obra civilizadora estava concluída.
Também é importante abordar o outro lado desta tão “ magnífica reforma”. Todas as atividades da prefeitura estavam coordenadas pela comissão da Carta Cadastral do Distrito Federal, chefiada pelo engenheiro Alfredo Américo de Sousa Rangel(11) . Coube a esta comissão traçar os planos de alargamento das ruas, a canalização dos rios, o prolongamento e abertura de novas avenidas e o estabelecimento da rede de água e esgoto da cidade. Esta comissão também se responsabilizara pela questão de higiene domiciliar, que forçou a transformação dos edifícios já existentes. É fundamental uma definição nos critérios para a construção de novos edifícios, e é aí que a especulação imobiliária fará sua festa. A especulação imobiliária e a melhoria nos meios de comunicação, estes são os dois aspectos mais marcantes da reforma urbana.]
Não é necessário ser nenhum gênio para compreender o envolvimento de Pereira Passos com setores ligados ao comércio, aos meios de transportes, e é claro a construção covil. Os leilões dos terrenos desapropriados ocorriam ainda quando eram apenas montes de entulhos e era ali mesmo que se barganhavam e definiam a ocupação dos novos espaços, agora valorizados pelas novas e largas avenidas. Mas havia um empecilho: os prédios antigos que restaram, ou seja, sobrados velhos e escuros passaram a ser disputados na compra, venda e aluguel e isso desestimulava a construção de prédios mais modernos, pois acabariam valendo o mesmo que os que já existiam. Esse motivo fará com que a prefeitura tome a seguinte atitude:
“ (...) impedir a valorização constante dos prédios antiquados das ruas estreitas por onde passa hoje o mais forte movimento urbano, permitindo a sua substituição em época não remota(...)”(12) E assim a moradia dos mais pobres se torna alvo da especulação imobiliária e estes, ora que vão viver em outro lugar! (grifo meu). Sendo assim, os pequenos construtores, os pequenos construtores vão ficando fora desta “ maravilha de civilização”, e isto se dá com as novas normas para a construção dos prédios, com elevado custo dos terrenos e com a abolição da figura do mestre-de-obras.
Em todos os setores desta grandiosa urbanização os cidadãos pobres foram sendo postos para fora, como se o progresso não fosse para os eu bico. Em 1906, quando terminava a administração de Pereira Passos, também chegava ao fim o bota-abaixo com um saldo de 1681 habitações derrubadas e 20.000 pessoas obrigadas a deixarem o lado nobre da cidade, escondendo-se nos subúrbios da Central e Leopoldina, morros e favelas.
A reforma de Rodrigues Alves e Pereira Passos haviam dado uma outra face à cidade, mas esta face era falsamente branca, falsamente rica.

(11) Rocha, Oswaldo Porto. A Era das Demolições- PP 65
(12)Relatório da Prefeitura do Distrito federal, Melhoramentos da Cidade projetada pelo prefeito Francisco Pereira Passos – Rio de Janeiro, 1903 – pp 23 – Arquivo Nacional 





                           CIDADÃOS INATIVOS... ONDE MORAR?

“Por este intrincado de ruas e bibocas é que vive a grande parte da população da cidade, cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhes cobre impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.”
Lima Barreto (13)

Como coloca Lima Barreto, a população que antes viva no centro da cidade, e com isso tinha meios mais fáceis e rápidos de chegar ao trabalho, ou de se “virar” em caso de subemprego foi sendo empurrada para a periferia da cidade.
Também é certo que as favelas já existiam, a mais conhecida estava localizada no Morro da Providência, até então conhecido como Morro da Favela, por ser local de habitação dos remanescentes de Canudos, que trouxeram do sertão baiano esta expressão. No relatório da prefeitura já citado, encontramos a seguintes informações:

“(...) habitações feitas de estuque, com pequenas janelas e portas estreitas, telhado de zinco ou folha de lata de querosene. O tamanho destas construções são geralmente maiores do que os cortiços, há também maior espaço entre uma construção e outra e nenhuma casa era feita de madeira (...)”.(14)
Foram estes locais que abrigaram os 20.000 desabrigados pela modernidade, e assim o Rio de Janeiro pôde finalmente desfrutar plenamente do título de Cidade maravilhosa, e é no centro civilizado desta cidade, que desfilam os primeiros automóveis, circulam os bondes, o Teatro Municipal recebe famosas óperas e grandes concertos musicais, a Escola de Belas Artes expõe artistas renomados e o debate político encontra calorosa discussão no Senado Federal.
É lá de cima do Morro da Favela que os cidadãos sem renda, sem posses e sem cidadania, que antes residiam nos cortiços, observam sem entender muito bem toda essa modernidade.

(13)Barreto, Lima. Clara dos Anjos – PP 109
(14)Relatório da Prefeitura do Distrito Federal. Melhoramentos da Cidade projetada pelo prefeito Pereira Passos, 1903 – Arquivo Nacional.

                                                             CONCLUSÃO
Hoje esta “maravilha de cidade” sofre com a desigualdade social e com a péssima distribuição de renda. Os filhos desta desigualdade cobram caro pela sua cidadania fazendo com que a cidade se torne mais, muito mais, violenta do que maravilhosa.
O projeto capitalista que tomou corpo coma República encontra-se hoje consolidado, o Brasil é consagradamente um país capitalista de Terceiro Mundo, isso quer dizer que o papel de exportador de matéria-prima para países capitalistas desenvolvido está sendo desempenhado de forma brilhante, e a nova moda neoliberalista é usada em todos os setores da sociedade brasileira. Sendo assim, fica fácil compreender o papel que as classes populares exercem no sistema capitalista, e a quem esse sistema beneficia. Por isso, para completar esse meu raciocínio, peço ajuda a Lênin, que já chamava a atenção para o processo de exportações de capitais dentro do projeto imperialista, que se consolidou na primeira fase da República brasileira. Segundo ele:

“ (...) as nações européias, plenamente capitalistas, como Inglaterra e França sistematicamente concedem empréstimos àquelas em fase de desenvolvimento, particularmente as da América do Sul e do Leste europeu. Estes empréstimo são feitos não em nível de investimento industrial privado, mas tratados diretamente com o poder público, com os governos. Outra particularidade esta na finalidade da transação isto é, aplicação do capital no setor privado de exploração, ou então em setores ligados à modernização, tais como: ferrovias, companhias de carres, luz e força. Ainda dentro desta filosofia, os bancos procuram sempre orientar a aplicação dos recursos que emprestam, visando sua utilização em obras que venham lhes beneficiar." (15) em>


Sendo assim, podemos concluir que esse conjunto de práticas provocou um reforço nos laços de dependência dos governos com o imperialismo. Neste foco é fácil entender quem se faz e quem não se faz cidadão nesta sociedade que vivemos. E hoje temos reflexos bastante claros de uma República proclamada às escuras e podemos ver perfeitamente q quem se destinava, assim fica óbvio que ainda temos muito para aprender no que toca ao quesito cidadania. Por isso encerro este texto com entendimento perfeito de que cidadãos são os outros e não o povo.

(15)Lênin. VI Obras escolhidas v.1, Alfa-Ômega, SP, 1979.
* Denise Oliveira é Professora da Rede Estadual de Educação.
Rio de Janeiro, Julho de 1999.

BIBLIOGRAFIA
Fontes Primárias:
Relatório da Prefeitura do Distrito Federal. Melhoramentos da Cidade Projetada pelo prefeito Francisco Pereira Passos – DF/RJ – 1903. Arquivo Nacional

Fontes Secundárias:

BARRETO, Lima. CLARA DOS ANJOS. RJ, Tecnoprint, sd
CARVALHO, José Murilo de. OS BESTIALIZADOS – O RIO DE JANEIRO E A REPÚBLICA QUE NÃO FOI.
SP, Companhia das Letras, 1996.
CHALHOUB, Sidney. CIDADE FEBRIL- CORTIÇOS E EPIDEMIAS NA CORTE IMPERIAL, SP, Companhia
das Letras , 1996.
CHALHOUB, Sidney. TRABALHO, LAR E BOTEQUIM- COTIDIANO DOS TRABALHADORES NO RIO DE
JANEIRO DA BELLE ÉPOQUE. SP, Editora Brasiliense, 1986.
HOBSBAWM, Erick. BANDIDOS. RJ, Forense-Universitária, 1975.
LENIN. VI OBRAS ESCOLHIDAS. v1. Alfa-Ômega, 1979.
ROCHA, Oswaldo do Porto e CARVALHO, Lia de Aquino. A ERA DAS DEMOLIÇÕES/HABITAÇÕES
POPULARES. RJ, Coleção Biblioteca Carioca 2° edição, 1995.
SEVCENKO, Nicolau. A REVOLTA DA VACINA- MENTES INSANAS EM CORPOS REBELDES, RJ, Editora
Spione, 1993.
Este texto foi apresentado no X Encontro de Professores da ANPUH, Florianópolis 1999.

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